Sobre
ilícitos ambientais: Despertando sua consciência crítica.
“Um
dia um médico realizou uma autópsia num cadáver que havia levado trinta
punhaladas e, ao final deu seu veredito: “morte natural”. Diante dos protestos
indignados dos parentes e amigos da vítima, o médico replicou: “Ora, com trinta
punhaladas era natural que ele morresse”.
A anedota acima serve como
reflexão dirigida para todos que atuam, interagem, defendem, militam, vivem ou
sobrevivem em seus ambientes naturais, sejam urbanos ou rurais, usufruindo de
seus recursos naturais (renováveis ou não) através das relações estabelecidas
segundo as bases sociais e culturais nos quais estão inseridos, se identificam
e se reconhecem. O meio ambiente e sua defesa têm sido tratados justamente como
a história acima, numa analogia tão verdadeira quanto incômoda em que a
humanidade, após tantas agressões se vê próxima da possibilidade da perda do
direito fundamental expresso no Art. 225 da Constituição de 1988, onde:
“Todos
têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia
qualidade de vida, cabendo a todos e ao poder público o dever de preservá-lo e
defendê-lo para as presentes e futuras gerações.”
Uma simples leitura e
compreensão do texto deixa claro que nosso ambiente deve ser ecologicamente equilibrado, não mercadologicamente, financeiramente, muito menos setorialmente.
Desde então o Brasil e nossa sociedade vêm, a duras penas, entre embates e
conflitos, confrontos e derrotas, implantando e aprimorando nossa legislação
ambiental para garantir esse direito que ao mesmo tempo, exige o compromisso de
todos e a incorporação de sua parcela dos deveres.
Nosso ambiente, espaço
herdado de gerações passadas e tomado emprestado das gerações futuras cada vez
mais tem sido palco de conflitos envolvendo interesses de grupos sociais com
diferentes modos de uso, apropriação e significação da natureza, seja esta
natural ou transformada pela mão humana, e em decorrência destes eventos
assistimos estarrecidos e incrédulos o avançar da degradação ambiental num
ritmo nunca antes vivido pela humanidade, que numa análise mais profunda e
menos reducionista atesta as
profundas crises estruturais do modelo econômico e civilizatório no qual
estamos inconscientemente mergulhados, entretanto isto não nos faz
necessariamente meros espectadores de uma hecatombe planetária inédita em que
nós, como seres dominantes na biosfera seremos os primeiros a patrocinar, implementar
e executar nossa própria extinção.
“Os
discursos reducionistas sobre problemas ambientais não realizam a integração
das dimensões técnicas, institucionais e sociais na compreensão dos riscos,
tampouco contribuem para o diálogo abrangente daqueles que estão genuinamente
envolvidos e querem resolver os problemas.” (Porto, Marcelo Firpo de Souza,
2007. Uma Ecologia Política dos Riscos. Ed. Fiocruz. Pág. 48)
De 5 a 16 de junho de 1972
na Suécia, mais de 100 países participaram da Conferência de Estocolmo sobre o
ambiente humano e o mundo desperta para as questões ambientais e ecológicas,
até então desconhecidas. O Brasil numa inacreditável manobra toma para si o
protagonismo da contra-mão e do contra-senso (Liderada pelo então ministro do
Interior, Costa Cavalcanti, signatário do AI-5 e depois presidente da
binacional Itaipu) ao propor que receberia de braços abertos tudo que os demais
países rejeitavam: a poluição ambiental ocasionada pelas suas operações como
sustentáculo econômico.
“Bem-vindos
à poluição, estamos de abertos para ela. O Brasil é um país que não tem
restrições. Temos várias cidades que receberiam de braços abertos a sua
poluição, porque o que nós queremos são empregos, são dólares para o nosso desenvolvimento.”
Fonte: Justiça Ambiental e cidadania. Henri Acselrad, Selene Herculano, José
Augusto Pádua. Artigo de João Carlos Gomes. Membro da Associação de combate aos
POPs. Pag. 244
Os resultados não tardariam
a serem conhecidos e o caso da cidade de Cubatão (Vale da Morte) dos anos 80 é
notório em todos os estudos de caso envolvendo fontes fixas de contaminação do
ar, água e solo. A partir da constatação de indícios e evidências concretas dos
níveis crescentes da deterioração ambiental em toda área de influência do que
ficou conhecido como “Vale da Morte”, o Brasil se vê responsável e
responsabilizado pela proteção, conscientização, preservação e recuperação dos
aspectos relativos ao ambiente.
Relatos de ilícitos
ambientais com tais proporções não são privilégios de regiões que
experimentaram um modelo desenvolvimentista equivocado, mas casos semelhantes
espalham-se de forma incômoda por todo território nacional como pode atestar o
“Mapa dos Conflitos Ambientais” elaborado pela Fiocruz com apoio da Rede
Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), e dentre estes casos é particularmente
singular a contaminação por HCH (Hexaclorociclohexano) da Cidade dos Meninos,
que é uma área de 1.900 hectares, hoje sob responsabilidade do Ministério da
Previdência Social localizado no bairro do Pilar, distrito de Campos Elíseos,
Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O que diferencia este ilícito ambiental
dos demais são suas características de criação e gerenciamento, pois mesmo
conhecendo a periculosidade do composto organoclorado usado como pesticida no
combate a malária, o então órgão responsável (Instituto de Malariologia) direcionou
a fabricação e estocagem para um abrigo de menores carentes criado em 1943 pela
então Primeira-Dama Darcy Vargas. Em seu encerramento de atividades em 1961, a
fábrica deixou como resíduo 240.760 iscas rodenticidas (ratos); 112.407 litros
de triton X-151 (detergente); 109 tambores de xilol e pó anti-culex (BHC). (Dados obtidos no Relatório final de gestão
de seu diretor Brigadeiro Dr. Bijos, apud Mello, 1999).
Analisando os dois exemplos acima de
forma integrada e contextualizada sob uma ótica centrada no risco ambiental(¹), nota-se que em
ambos os casos houveram fortes indícios de imperícia, imprudência, negligência,
descaso, omissão, ou desconhecimento de todos os quinze (principais) princípios
fundamentais(²) da tutela dos bens difusos dos quais destacam-se: o da prevenção e o da precaução, onde o primeiro
visa a prevenir danos quando as conseqüências da
realização de determinado ato são conhecidas. O nexo causal(³) já foi comprovado, ou decorre de lógica;
enquanto o da precaução opera quando não há certeza científica quanto ao dano,
mas faz permanecer o dever de evitá-lo.
(¹)
Risco ambiental: Define-se como risco ambiental como as várias formas de
poluição ambiental, que se espalham pelo ambiente através dos sedimentos ou
meios ambientais – como ar, solo, água e alimentos – vindo a se concentrar e
atingir finalmente determinadas populações, que acabam por se contaminar nos
locais em que vivem e transitam, ou através de sua alimentação. (Porto, Marcelo
Firpo de Souza, 2007. Uma Ecologia Política dos Riscos. Ed. Fiocruz. Pág. 31)
(²)
Princípio: São os mandamentos, básicos e fundamentais, nos quais se alicerça
uma ciência. São considerados como normas hierarquicamente superiores às demais
normas que regem uma ciência.
(³)
O nexo causal é
elemento necessário para se configurar a responsabilidade civil do agente
causador do dano. O nexo de
causalidade relaciona-se com o vínculo entre a conduta ilícita e o dano, ou
seja, o dano deve decorrer diretamente da conduta ilícita praticada pelo
indivíduo, sendo, pois conseqüência única e exclusiva dessa conduta. Fonte: http://www.jurisway.org.br/v2/pergunta.asp?idmodelo=6463
As Ciências Jurídicas e o
próprio estado democrático de direito em que vivemos, proporcionam e
instrumentalizam a sociedade com inúmeras ferramentas e instâncias jurídicas
que os movimentos sociais organizados de caráter ambiental já fazem uso
corriqueiramente, destacando a Lei nº 7.347 de 24 de julho de 1985, que
disciplina AÇÃO CÍVEL PÚBLICA de responsabilidade por danos causados ao meio
ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico.
Observa-se de fundamental
importância a atuação e interseção do Ministério Público como grande defensora
dos direitos difusos e coletivos (Onde está acautelado o meio ambiente). Na Constituição
Federal do Brasil, o artigo 127 da Constituição Federal dispõe que o Ministério
Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis.
A abordagem da legislação à
luz da gestão ambiental não pode ser resumida ou reduzida somente à fria
interpretação textual e sua aplicação, logo a proposta ora apresentada não
almeja sequer arranhar o verniz referente as ciências jurídicas e ambientais,
entretanto a multiplicidade, transversalidade, interdisciplinaridade comuns aos
estudos dos intricados processos ecossistêmicos da natureza e da humanidade
levam-nos a expor as profundas contradições e armadilhas criadas pela
prevalência hegemônica do pensamento neoliberal em profundo detrimento das
necessidades da população por justiça, criando abismos intransponíveis aos que
não têm acesso digno aos mecanismos promotores da cidadania ambiental.
Analisando todos os cenários
e atores envolvidos, cabe expor e explicitar as divergências teórico-políticas
com determinadas parcelas da produção científica e acadêmica sobre as temáticas
desenvolvidas e apresentadas relativas ao nosso ambiente, porém é fundamental compreendermos
e aceitarmos as profundas relevâncias pelos verdadeiros embates e confrontos
para que a construção e difusão do conhecimento seja livre de subterfúgios,
vícios e das superficialidades do ego e assim superarmos a dominação por um
modelo civilizatório baseado na técnica e no saber da propriedade privada, evoluindo
para um modelo sócioeducacional-democrático emancipado, solidário e conhecedor de
seus intrínsecos e fundamentais direitos a uma sociedade mais humanizada e
menos predatória de si mesmo, sem a exploração do ser humano por ele mesmo e
transpondo os fatores limitantes que perpetram e eternizam tais mecanismos excludentes, manipuladores e
desagregadores em todas suas variantes, tipologias e discursos, estes sim, os verdadeiros
patrocinadores de todas as formas possíveis das vulnerabilidades sociais e
ambientais.
"Pela dedicação e respeito a todas as formas de vida"
Yoshiharu Saito